O MOURARIA
Grande algazarra na parada. Centenas de soldados olhavam pasmados o céu. Será um satélite artificial? Não, na disso! No topo da enorme antena de VHF do quartel da Cavalaria em Castelo Branco, um soldado, de fralda de fora, gesticulava com o único braço livre. Com o outro, segurava-se ao poste.
— É o Mouraria, é o Mouraria! Diz que se vai atirar dali para baixo, se não o deixarem ir a casa este fim-de-semana.
No fundo, o Mouraria era um «vasilha torta» mais ou menos inofensivo, cujas partidas e tropelias eram por vezes divertidas. Só quando abusava da bebida é que se tornava incómodo e obrigava a actuações mais firmes.
O homem continuava a gesticular, ora com um braço, ora com o outro, e nem descia nem cumpria a ameaça, na qual ninguém acreditava. Como não o demovessem a abandonar o poleiro improvisado, tornou-se necessário chamar o comandante que se deslocou até à antena e tentar convencê-lo a descer, o que nem foi demorado, nem obrigou a grandes argumentos. Afinal, parecia que o problema era apenas falta de atenção. Recebeu o raspanete como os que se dão a um menino reguila que provocou o pai para ver se ainda gostava dele...
Embarcado no navio Uíge, o nosso Mouraria continuava a dar nas vistas, tentando atrair a atenção de todos, umas vezes pela falta de atavio, outras vezes por ter bebido umas cervejas a mais, outras ainda por desaparecer no emaranhado dos porões, transformados em latas de sardinha para «acomodar» os soldados. Não sendo propriamente mal comportado, exigia um cuidado e vigilância especiais, que nem sempre lhe podiam ser dispensados. Muitas vezes, o melhor remédio era fingir que não se via nada, o que parecia não ser muito do seu agrado.
As coisas na viagem foram-se aguentando, até ao dia em que a tripulação do navio apresentou queixa ao comandante do contingente embarcado, porque havia um soldado, de fralda de fora, a gesticular no alto do mastro principal, junto à flâmula. Foi necessário muita diplomacia para evitar que o Mouraria fosse castigado. Ameaçado de ser metido a ferros no alto mar, prometeu solenemente que se ia portar bem durante o resto da viagem.
Chegado a Bafatá, a terra do seu destino, não tardaram muitos dias que a antena do VHF fosse enfeitada pelo gesticulador de fralda de fora, desta vez em calções, o que o tornava ainda mais caricato. As ordens eram que ninguém lhe desse atenção, o que o levou a descer com «o rabo entre as pernas», e a deixar de repetir a graça.
De estatura acima da média, cabelo arruivado e de olhos claros, ostentava orgulhosamente numerosas medalhas de bom comportamento, que variavam desde sinais de pedradas no coiro cabeludo, até marcas de navalhadas em várias partes do corpo. Porém, demonstrou uma habilidade rara para o teatro. Durante a quadra do Natal, o Mouraria foi estrela de destaque numa patusca peça de teatro de desfecho sangrento, do género Shakespereano, onde representou, com graça e mestria, o papel de Júlio César em peripécias amorosas com Cleópatra. Por mais que se lhe explicasse que o seu travestido partenaire se chamava Cleópatra, ele não conseguia deixar de pronunciar «Cleopantra», o que dava um ar ainda mais cómico à representação. Ficou bem gravada na memória de todos o final dramático em que ele, antes de esfaquear a sua amada e se suicidar, pronunciou as derradeiras palavras que encerravam a tragédia:
— Cleopantra, minha p..., puseste-me os cornos!!!
Já tinha decorrido mais de um ano de comissão, e o Mouraria ia sobrevivendo sem problemas de maior, fruto da cobertura que lhe davam os camaradas, do fechar de olhos dos graduados, e de lhe ter sido racionada a cerveja.
Normalmente só dava problemas no quartel. Durante a actividade operacional, portava-se bem, e não largava a sua «seringa», uma enorme metralhadora Browning de meia polegada que guarnecia a sua viatura blindada. Cumpria as ordens e nunca usava subterfúgios para se «baldar» a uma escolta ou operação mais arriscada. Só uma vez, no quartel, é que foi necessário intervir quando, depois de ter emborcado num bar da vila umas tantas cervejas, resolveu tirar a cavilha de segurança a uma granada de mão e passear-se com ela na caserna, com poses ameaçadoras. Como de costume, só acalmou quando o comandante falou com ele. Recebido o ralhete, foi para a cama ciente de que ainda havia alguém que lhe dava atenção.
Já lhe faltavam poucos meses para acabar a comissão, quando o seu pelotão foi destacado para Piche, a fim de reforçar a guarnição local. Aí, no final duma tarde quente e húmida, acabado de regressar duma escolta a Buruntuma na fronteira com a hostil Guiné Conakri, o Mouraria foi chamado para limpar umas trincheiras da defesa do quartel. Já um tanto bebido e descontente com a ordem, travou-se de razões com um graduado. Habituado nas ruas do seu bairro a resolver as coisas à sua maneira e, longe dos seus amigos que o conheciam bem e o seguravam nestas ocasiões, levantou a enorme mão para o interlocutor.
A justiça não se fez tardar perante um caso tão evidente de insubordinação. De nada lhe valeu o graduado ter retirado a queixa. Estando em Piche, o Mouraria foi o bode expiatório ideal para a aplicação de um castigo exemplar. É que castigar duramente um elemento «de fora», servia de intimidação e não fazia correr o risco de impopularidade interna...
A prisão em Bissau foi o começo de uma odisseia misturada com uma escalada de actos de indisciplina que acabaram nas enxovias do forte de Elvas. Nascido e criado na marginalidade da rua, incapaz de viver enquadrado por qualquer tipo de disciplina por mais compreensiva que ela fosse, o Mouraria completou assim, no mato e na prisão, cerca de quatro anos de serviço militar.
A Pátria madrasta que nada lhe deu, só se lembrou dele para lhe meter uma arma na mão em defesa dos seus interesses, e para o punir por não o fazer da melhor forma.
Publicado no livro de contos “Travessia” de Costa Monteiro (Editorial Escritor, 1996)